Quando não há bola que preste, o que é que uma pessoa faz? Uma pessoa lê. Pelo menos, aqui na redacção, é isso que a gente faz. Ultimamente, com os jogos da selecção e o consequente aumento exponencial do índice de tédio, temos até praticado uma nova modalidade. É o "toma lá este, que eu já li, passa para cá o teu" e é uma espécie de busca desesperada de algo que nos provoque uma qualquer expressão facial, um esgar, um sorriso, uma fungadela, uma gargalhada alarve milagrosa. Explicada a situação, nos últimos dias, sempre que acabo de ler A Bola, troco com o Férenc - "pasa p'ra cá o Record" e ele passa, embora ainda só vá a três quintos da leitura. Já tentámos incluir a Helena neste esquema de trocas, mas ela não abdica da sua Maria e, para enganar o seu próprio tédio sem ter de entrar em trocas, passou a comprar também a Ana + Atrevida, cujas dicas sobre o desempenho sexual têm feito maravilhas lá em cas... err... segundo o Férenc, que eu nunca li aquilo. Ele é que vai lá espreitar, de certeza.
Esta nova aventura no mundo do conhecimento e da comunicação futeboleza abriu-nos novos horizontes e permitiu-nos o contacto com seres e substâncias alienígenas que, de outra forma, permaneceriam no limbo do nosso desconhecido. E se, ontem, o Férenc desencantou um número engraçadíssimo, ah ah ah, acerca do dodotismo d'A Bola para com a Gloriosa Instituição, eis que hoje eu me espanto com algo não menos notável: um novo cretino no Record. Eu tinha para mim que, numa escala de cretinos, o fundo era o Alexandre Pais. E, ainda mais abaixo, o buraco escavado era o José António Lima. Isto, é claro, porque eu era um ignorante sem consciência da própria ignorância. Mas, agora, que ignoro mas sei que o faço, tal como Sócrates (o antigo), o caso muda de figura. A verdade, meus lindos, é que descobri o Rui Santos e isso abalou o meu cretinómetro.
Disserta Rui Santos, na última página do pasquim verde, acerca do Apito Rosa, uma espécie de teia conspirativa em tons femininos que arruinaram Pinto da Costa. Antes de mais, com tanto apito, e sendo este rosa, ainda por cima, a coisa fica à beirinha de um abismo: o da piadola fácil, trocadilhos que metam ao barulho a palavra "apito" e a característica distintiva fundamental da mulher. Mas o Dianabol prima pela elevação e pelo consumo de substâncias caríssimas, pelo que não cairei na tentação de dizer uma gracinha assim. Foquemo-nos na prosa de Rui Santos - sim, porque a teoria em si tem muito pouco interesse. A prosa, essa, merece leitura atenta.
"O pai da literatura inglesa, há uns bons pares de séculos, questionava-se 'o que haverá de melhor do que a sensatez? A mulher. E melhor do que uma boa mulher? Nada.'" escreve o artista na abertura do seu texto - e, por esta altura, o dianabólico leitor já fervilha em perguntas e reclamações, aposto. Mas eu, ignorando a leviandade com que um escriba de bola se põe a falar sobre as qualidades da pessoa feminina, atiro-me ao que me interessa: mas quem é esse tal pai da literatura inglesa? Há um bom par de séculos, William-Henry Ireland ou Elizabeth Bonhote, por exemplo, eram nomes da literatura gótica britânica. Serão estes os responsáveis pelo nascimento - tardio, diga-se - da literatura inglesa? Para que a pergunta se torne ainda mais complexa e densa, acrescento a frase com que Rui Santos encerra este brilhante primeiro parágrafo: "Já Voltaire - a-ah, Voltaire!... este Santos é um poço de cultura... - proclamava que Deus criou as mulheres apaenas para domesticar os homens". Notável. Palpita-me que, tal como eu fiz para desencantar dois nomes da literatura inglesa de "há um bom par de séculos", Rui Santos foi ao Google. Aí, terá efectuado uma busca por "notable quotes" e, uma vez chegado ao site, sacou "um bom par" de frases relacionados com a mulher. É bem esgalhado. Ainda estou intrigado com aquela do pai da literatura... bom, adiante.
Rui Santos brilha ao longo do texto, explanando a sua verve sobre a página que amanhã, injustamente, servirá para forrar caixotes do lixo em casas pobres ou limpar vitrinas em pastelarias de bairro. Veja-se esta "é tempo de se perceber que há um apito dourado no feminino. O Apito Rosa". Eu estremeço. A sério, não estou a inventar. Rui Santos, para além de ter um "bom par de óculos", é, sem dúvida, o pai da literatura no Record. Mas ele não se detém. Por exemplo, fala da luta de Pinto da Costa - contra o poder supostamente centralista e "terreiro-pacista" (?!?!) no futebol - recorrendo a termos e expressões como "quebrou a espinha da hegemonia capital com a coronha da espingarda", num registo lírico-bélico, ou "pelo caminho até à necrópole", numa tirada mais fúnebre, ou ainda "destroçando pelotões na terra e as vagas supersticiosas no mar. Não havia mulheres nem sereias no horizonte", numa conversa já a sugerir a necessidade do acompanhamento clínico. Eu diria que Rui Santos tem, para além de um bom par de demências, o registo de paternidade do poema épico no jornalismo desportivo português.
Eu estou impressionadíssimo com este talento que se revela. E estou, também , disposto a modificar a minha escala antónio-límica,
aka cretinómetro. Sem dúvida, este Rui Santos dá-me que pensar. Quando penso que percebi a ideia, eis que ele faz a revienga e o rodriguinho, e eu, prostrado, rabo no chão, olho com espanto o seu remate final "o apito rosa é uma história de espionagem, inspirada em Mata-Hari". Vai buscá-la.